Como tudo na vida,
escrever também tem seu preço e seus riscos. Escrevi um poema como se fosse uma mulher. Por sinal, este não é o primeiro
assim que escrevo.
Não se trata aqui de se
fingir de mulher, se passar por uma, até porque o autor, masculino, assina o
poema. Trata-se, sim, de exercitar esse discurso do feminino, em parte
acessando a porção feminina da minha alma e em parte fazendo um exercício mesmo
de imaginação.
Chico Buarque notoriamente
faz isso e o faz muito bem.
Os riscos aos quais me
referi acima, são de perder a medida da diferença entre uma mulher escrever e
um homem escrever como se fosse a mulher a falar. Perder essa medida pode
resultar em algo um tanto caricato e a
intenção com o poema não foi fazer uma caricatura.
Quando nos deslocamos de
nós mesmos para exprimir outro, quando tentamos encarnar um personagem, real ou
fictício, esse despir-se de si para vestir outro - que nunca é completo, porque
não conseguimos tamanha depuração e no fim um pouco de nós está lá presente - é
sempre uma potencial armadilha e é preciso estar atento a isso no momento de elaborar o texto.
“O texto feminino não se
constrói em torno de um Grande Sentido, mas em torno de minúcias, banalidades, desvios,
multiplicação de sentidos minúsculos, do corpo, do gozo e das paixões". Do
lvro “O que é escrita feminina”, de Lúcia Castelo Branco, psicanalista e
doutora em Letras.
Dom
Esse homem forte e terno
Céu do meu inferno
me ataca pelos flancos
Saqueia saltimbanco
Lhe assino cheque em branco
Faz repicar meus sinos
com alma de menino
e truques de um Houdini
Me ama e vandaliza
Meu corpo à sua guiza
Esse homem não promete
Só cumpre e sem confete
Garimpa, perigoso
até achar meu gozo
Me deixa do avesso
e sai dizendo: un beso
No rastro paira seu cheiro
Um dom de pioneiro
de toda a gostosura
que sempre me inaugura
Belo. Escutei até Chico ao fundo e hoje estou muito zangada com ele. Caricato? Corremos todos nós o risco, pois tão tênue é esse limite que tentamos reforçar as tintas do macho e fêmea que lemos pelo mundo seja das artes ou do cotidiano.
ResponderExcluirÉ, Emilce, também estou meio passado com meu ídolo Chico, por conta dessa postura duvidosa dele com relação à censura prévia das biografias. Sim é tênue esse limiar do feminino masculino na escrita e a tendência é carregar nas tintas no afã de tornar esses contornos mais evidentes. Obrigado!
ExcluirRicardo, é um exercício mais complicado que que trocar artigos... é uma reorganização e um encontro maior com o homem que é... Belo! E acho que ficou perfeito!!
ResponderExcluirÉ, Karinne, eu escrevi sim este texto me imaginando e sentindo essa mulher que narra, confessa e enaltece o homem falível e virtuoso que ela deseja. Grato!
ExcluirUm excelente exercício poético!
ResponderExcluirMuito obrigado, Gilson Maia!
ExcluirBelo texto e belo poema! Parabéns! Você tem livros publicados?
ResponderExcluirMuito obrigado, José Nascimento! Publiquei um livro neste ano, que se chama Arrebatamentos e outros inventos.
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