Tem coisas que se pode fazer de forma solitária, em parceria ou coletivamente. Desde sexo até escrever poesia, passando por fazer exercícios, conversar (há quem fale sozinho, diante do espelho ou não), dançar e algumas outras atividades que não me ocorrem agora...ah, me ocorreu uma pelo menos: pensar, que quase sempre é solitário, a não ser quando pensamos em voz alta e um interlocutor interage com isso, ou um estranho se intromete. E pode ser coletivo, se participamos de algum tipo de brainstorming.
Sou escritor e corredor e quase sempre escrevo e corro sozinho. Escrever – e não falo algo inédito – é solitário por mais de uma razão. A mais evidente delas é que o escritor precisa de silêncio, concentração e conforto. Claro que tem exceções a essa regra. Ferreira Gullar, por exemplo, gosta de criar nas calçadas, caminhando, entre as pessoas e pensando como elas nem desconfiam que ali está nascendo, invisível e inaudível, um poema.
Não que eu busque isso, mas comigo já aconteceu e não raras vezes. Já escrevi, mentalmente ou com caneta e papel, em filas de banco, no metrô e em salas de espera de consultórios médicos. Antes o burburinho da tv ligada na Ana Maria Braga na longa espera no dentista, que deixar um poema se desvanecer na desmemória.
E aí vem uma outra razão de escrever ser preferencialmente solitário: pudor. Um poema ainda inconcluso está como que nu e o cara do teu lado no metrô espichando o olho curioso com a tua escrevinhação te produz instintiva e imediata reação de recato e você pudicamente abdica de prosseguir na escrita e dobra o papel, num protesto sutil e mudo contra a invasão.
Claro que escrever a dois ou coletivamente é possível e até pode ser uma experiência rica, mas é um contexto diferente e pouco comum. Correr tbm pode ser assim, mas em geral é solitário também. E Epifania se originou do encontro entre o escritor solitário e o corredor idem e ambos, apertados dentro de um só, correram e poetaram isso, uma parte ainda correndo...
Caro Jorge, suas palavras tão perfeitamente colocadas, em forma de poema; é meu estilo de leitura. Seja como poesia, como conto, ou formas outras de expressão; faz com que minh'alma fique atenta à beleza das palavras! Parabéns por esse Dom! Abraço!
ResponderExcluirSim, Marlene, as palavras são poderosas. E que as usemos sempre com sabedoria e emoção. Grato!
ExcluirEu me perdi
ResponderExcluirDe mim mesmo
Correndo no parque
Chovia uma chuvinha fina
Que esfriava a pele
Quando Eu ainda me sentia
Isto é
Quando Eu ainda percebia
Que era Eu mesmo que corria
Já era quase noite
E de repente uma Epifania
A mente como que se esvazia
Era outro Eu que corria
De baixo da chuva fria
Um Eu que era Eu mesmo
Em tudo parecido comigo
O mesmo rosto antigo
Que Eu vislumbrei no espelho
Antes de sair de casa
Agora sentado no banco do parque
A chuva escorre
Pelo meu rosto
Misturada
Com o gosto de lágrima
E a chuva cada vez mais apertava
Transformando-se em enxurrada
E Eu sentado no banco
Me via passado correndo
Um outro Eu
Que era Eu mesmo
Que se distanciava e sumia
De baixo da chuva fria...
Gabriel, legal a tua leitura traduzida em releitura poética. Gosto dessas interações.
ExcluirDemais esse teu poema, Jorge!
ResponderExcluirObrigado, caro Alex!
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