Somos herdeiros da tradição romântica, marcadamente na Literatura e no Cinema, com seus heróis, vilões, romances, idealismos, maniqueísmos e finais felizes e amores eternos. Um dos subprodutos disso que perduram é confundir autor e obra. O Ernest Hemingway de O velho e o mar e Paris é uma festa, brigava, bêbado, nos bares. Álvares de Azevedo, que morreu ainda muito jovem, escreveu inúmeros poemas de amor, todos imaginados, nunca realmente vivenciados.
Não se pressupõe um solitário quase misógino, lendo os apaixonados poemas de Álvares de Azevedo. Não se depreende um arruaceiro brigão ao fruirmos os romances de Hemingway.
Isso remete à questão do Eu lírico – Álvares de Azevedo é um perfeito exemplo disso – onde o autor não se coloca de forma real, não expressa seus sentimentos genuínos e assume o papel de um narrador, de um contador de histórias que relata sentimentos. Em função da nossa tradição romântica, a tendência é que o leitor funda o poeta e a pessoa numa só entidade e daí depreenda tons e intenções confessionais, quase documentos, de muitos poemas que, no entanto, expressam situações e sentimentos apenas imaginados, onde o autor está interessado e motivado a falar de sentimentos, a emitir conceitos, a narrar situações pelo menos não diretamente relacionadas com suas experiências pessoais, ou seja, onde predomina o eu lírico. O que não significa, é claro, que eu e todos os poetas não produzamos textos que traduzem nossas vivências reais.
Com frequência, diante da leitura de um poema de amor meu, ouço a já tradicional pergunta: “tá apaixonado?”, “pra quem você fez esse poema?” E, não raro, encaram com ceticismo minha explicação: tô, por alguém que imaginei quando escrevi o poema...”.
Os versos finais de um soneto meu ilustram isso:
“Cada alegria custa mil enganos
e vezes mil mentiras de poeta”