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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Regra não é receita


A poesia é um conceito, uma vertente e tem formas e regras, que são seguidas, recriadas, transformadas, rompe-se com elas, transgride-se. O que exorbita disso, e num viés que não agrega valor, são as receitas. Poesia e culinária são alquimias, mas uma sacia o estômago e as papilas gustativas, enquanto a outra satisfaz a alma e os ouvidos.

Seguir receitas em poesia é flertar com o pastiche, o previsível, a imitação. É permitir que o anêmico e espúrio que traz a convenção predomine sobre a criação e suas possibilidades de inovação, ineditismo e liberdade.


O haicai, forma minimalista de poesia nascida no Japão, ganhou o mundo no século XX, globalizou-se. Ainda é feito na terra do sol nascente pelos seguidores de sua secular tradição. No restante do mundo, ganhou nuances de cada cultura, clima, geografia, idioma. Poeta ocidental que faz haikai como quem segue receita de sushiman, sem querer vira impostor. Não nascemos no Japão, não falamos japonês e nossa contribuição criativa a essa forma tão peculiar e concisa de poesia é fazer haikai ao nosso modo, seguindo, é claro, determinadas regras que caracterizam a forma.

Sushi pode ser feito aqui, igual. Mas poesia são outros quinhentos hashis e nirás e em vez de imitada, melhor que seja recriada. Regras são importantes e são suportes da criação. Mas regra não é receita. E um prato bom, culinário ou poético, acontece quando a gente acrescenta nosso toque pessoal.



quinta-feira, 21 de novembro de 2013

O neo visita um lugar mais perto do céu


Tenho uma relação afetiva com um bairro singular do Rio de janeiro chamado Santa Teresa. Pra quem não sabe, é o bairro alto encravado entre o Centro e a Zona Sul, o único da cidade que ainda tem bonde, que passa por sobre os famosos Arcos da Lapa.

É um bairro bucólico onde moram inúmeros artistas. Muitas ladeiras, casario antigo, alguns mirantes pra linda vista da Baía da Guanabara. Raiz da minha família materna, frequento-o desde criança. Seu clima poético me fez querer poetá-lo. Mas não queria apenas fazer mais um poema pra “Santa”, como é chamado. Suponho que ele já tenha sido muso de muitos textos.

Então decidi recorrer aos neologismos, às aglutinações de palavras, pra tentar sintonizar meu poema com a singularidade do lugar. E assim descrevi os sons e a musicalidade da chuva descendo mansamente pelas ladeiras do bairro e o romantismo que isso inspira.


Bairromance


Uma chuviscosa desce
e escorregateia
lentátil
pelas ladeiras
de um bairromântico
que a recebem-vinda  
O ruidoce estival
invade sensíveis ouvidros  
como sonoros melodiamantes
Fundo musicaloroso
pro artistalentoso
que ouvê
pela janelabiríntica
a chuvida
hidratântrica
que lavalma



                        

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Poema nu


Tem coisas que se pode fazer de forma solitária, em parceria ou coletivamente. Desde sexo até escrever poesia, passando por fazer exercícios, conversar (há quem fale sozinho, diante do espelho ou não), dançar e algumas outras atividades que não me ocorrem agora...ah, me ocorreu uma pelo menos:  pensar, que quase sempre é solitário, a não ser quando pensamos em voz alta e um interlocutor interage com isso, ou um estranho se intromete. E pode ser coletivo, se participamos de algum tipo de brainstorming.

Sou escritor e corredor e quase sempre escrevo e corro sozinho. Escrever – e não falo algo inédito – é solitário por mais de uma razão. A mais evidente delas é que o escritor precisa de silêncio, concentração e conforto. Claro que tem exceções a essa regra. Ferreira Gullar, por exemplo, gosta de criar nas calçadas, caminhando, entre as pessoas e pensando como elas nem desconfiam que ali está nascendo, invisível e inaudível, um poema.

Não que eu busque isso, mas comigo já aconteceu e não raras vezes. Já escrevi, mentalmente ou com caneta e papel, em filas de banco, no metrô e em salas de espera de consultórios médicos. Antes o burburinho da tv ligada na Ana Maria Braga na longa espera no dentista, que deixar um poema se desvanecer na desmemória. 

E aí vem uma outra razão de escrever ser preferencialmente solitário: pudor. Um poema ainda inconcluso está como que nu e o cara do teu lado no metrô espichando o olho curioso com a tua escrevinhação te produz instintiva e imediata reação de recato e você pudicamente abdica de prosseguir na escrita e dobra o papel, num protesto sutil e mudo contra a invasão.

Claro que escrever a dois ou coletivamente é possível e até pode ser uma experiência rica, mas é um contexto diferente e pouco comum. Correr tbm pode ser assim, mas em geral é solitário também. E Epifania se originou do encontro entre o escritor solitário e o corredor idem e ambos, apertados dentro de um só, correram e poetaram isso, uma parte ainda correndo...